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terça-feira, 26 de outubro de 2010

Ana Rosa Kucinski

Ana Rosa Kucinski: 30 anos de mistério

Ana Rosa Kucinski
Ana Rosa Kucinski
"Ana Rosa e Wilson nasceram no ano de 1942 e teriam hoje 62 anos de idade. Tinham 32, quando desapareceram, no dia 22 de abril de 1974, e apenas 4 anos de casados. Viviam, então, um profundo momento de amor, e um compromisso com a luta que se tratava contra o regime ditatorial, que se revelaria fatal.
Seus nomes fazem parte, hoje, da lista do Comitê Brasileiro pela Anistia, ao lado de dezenas de outros ativistas políticos que desapareceram nos subterrâneos da repressão. Enquanto o destino dessas vidas não for esclarecido e as culpas justiçadas, nada garante que tais fatos não se repetirão.
Tirar uma vida, diz a sabedoria hasídica, é o mesmo que tirar milhares de vidas, pois desaparecem também os filhos que nasceriam daqueles que morreram, e os filhos desses filhos, e assim por diante, até o fim dos tempos". (Bernardo Kucinski, irmão de Ana Rosa, pela família)
"Quando, às vezes, fazendo concessões ao sofrimento e tocando em feridas que sangrarão para sempre, me transporto aos anos de 1960-67, vejo-me na casa de Ana Rosa ouvindo e fazendo confidências ao som de uma música clássica. Então, ao lado da amiga-irmã, vivo momentos de intensa poesia. Não que Ana escrevesse versos; sua maneira de ser era um poema.
Lembro-me que o curso que fazíamos exigia de cada um de nós dedicação exclusiva, mas Ana sempre forçou e deixou um espaço para cultivar a música, a literatura e os humanistas. Foi das poucas pessoas que jamais se deixou seduzir pela vida cômoda que poderia Ter usufruindo com um diploma de química, que nos proporcionava amplo mercado de trabalho. Ana Rosa era das poucas pessoas que carregava o peso do mundo. Por isso buscava, ansiosamente, o Amor e a Justiça.
Na busca do Amor tantas vezes caiu e tantas vezes levantou, sem que jamais lhe ocorresse curvar-se perante amor pequeno, porém mais cômodo.
Na busca da Justiça desconheço os caminhos que possa ter trilhado, mas imagino que foram profundamente penosos.
Cada vez que recebo informações sobre o sofrimento daqueles que foram vítimas dos nossos Órgãos de Segurança lembro-me dela e consigo vê-la portando-se com grande dignidade, porque jamais teve medo da morte e do sofrimento.
Buscou e viveu com tal intensidade o Absoluto que quando partiu já era idosa. E se lhe fosse permitido voltar, ela recomeçaria tudo de novo, da mesma forma". (Ignez, colega de Ana Rosa)
"Nós não caracterizamos Ana Rosa como uma jovem superdotada mas como uma pessoa com muita riqueza cultural intelectual e interna. Emocionalmente era de reações muitas vezes agressiva – forma pela qual se manifestava sua grande sensibilidade. (O "escândalo sem motivos" significava na verdade a percepção de coisas que escapavam dos outros). Existencialmente vivia cheia de dúvidas e nulações em função justamente dessa sensibilidade, daqueles que a rodeavam e de suas próprias reações. Sua preocupação permanente era conhecer o mundo (caráter político) e crescer como pessoa (auto-superação). Todas as experiências e leituras se situavam nesse contexto.
Por trás do caráter aparentemente temperamental residia numa moral firme (embora longe de vitoriana). Facetas dessa firmeza moral eram suas posições políticas – desde a política maior até ao relacionamento profissional – e suas amizades – que tinham um grande peso em sua vida – e o fato de nunca se Ter deixado seduzir pela ascensão ao poder – sua postura diante do pessoal da Universidade foi fundamentalmente a mesma desde sua entrada como aluna de 1º ano até seu desaparecimento como assistente-doutor.
Sua cultura era o motivo dos choques com o meio. O ambiente que a rodeava era profundamente conservador e superficial. Deste modo seria difícil a aceitação por parte dessa cultura das percepções intelectuais e humanas manifestadas por Ana Rosa. (E ela não conseguia deixar de manifestar suas opiniões e vivacidade diante dos fatos corriqueiros e notícias de jornais. Em momentos de depressão ela se lamentava não ter criado uma "casca grossa" que lhe permitisse se defender desse meio).
Após 14 anos de convivência diária na Universidade seu desaparecimento não causou grandes episódios de inconformismo.
Esse fato demonstra a consciência (ou inconsciência e impermeabilidade humana) do ambiente de trabalho. A inconsciência foi além do mero conformismo pois não provocou nenhuma atitude de procurar saber o que realmente lhe aconteceu.
Assim como não haviam assimilado ou sequer interagido com sua personalidade não se responsabilizaram socialmente por seu destino". (Sérgio e Lourdes, colegas de Ana Rosa)
"Março de 1961. No velho casarão da Alameda Glete, no seu jardim com um banco só, reinava um clima de euforia, suspense e expectativa. Era o dia do famoso Colóquio Geral, para argüir veteranos e principalmente os calouros. Chegada a hora, dirigimo-nos todos ao anfiteatro e nós calouros estávamos mais nervosos do que no dia do vestibular. Um a um, fomos sendo chamados para frente e voltávamos ao lugar humilhados e convictos de nossa burrice e ignorância. Era a vez de uma certa caloura alta e magra, cabelos curtos acastanhados chamada Ana Rosa Kucinski. Levantou-se, mas, no mio do caminho eis que ela tem um desmaio e cai ao chão. Correm os veteranos para socorrê-la e carregam-na para fora.
A turma achou mais tarde que foi um desmaio simulado, mas que sem dúvida servia, naquele momento, para a distensão do ambiente.
E assim, ela sempre enfrentou as diferentes situações à sua moda e a sua forma característica de situação manteve-a como uma figura notória dentro do fechado e austero universo da Química...
Naquelas tardes de domingo de 1963, quando tínhamos relatórios para elaborar o nosso grupo costumava se reunir na casa de minha mãe, que passou a ser conhecida como a "Pensão", pois, além de próxima à escola, oferecia boa comida, que era o nosso único lenitivo.
Geralmente, quem primeiro chegava era a Ana Rosa, reclamando muito dos f. d. p. que não haviam chegado ainda, pois ela sempre tinha pressa em terminar cedo a tarefa para ver se sobrava tempo de pegar um teatro ou um cinema.
Foi na "Pensão" que Ana Rosa passou a apreciar comida japonesa. Não tinha receio de provar coisas novas e até "sashimi" (peixe cru) chegou a experimentar. Mas do que ela gostava mesmo era do tempurá (camarão empanado). Porém, ela que comia pouco, estava em luta permanente com a "dona da pensão" que fazia questão que todos comessem muito e a Ana Rosa para se fazer entender e se impor, passava até a falar com sotaque.
Depois de um dia exaustivo, não tínhamos disposição para mais nada, mas lá ia a Ana Rosa para outros programas, pois ela sempre conseguiu conciliar as atividades escolares com as atividades culturais e artísticas, não ficando absorvida e enquadrada no ""mundo da Química", pois tinha o espírito aberto, arejado, inquieto e curioso por tudo que ocorria no mundo exterior". (Kazuyo, um dos melhores amigos de Ana Rosa)
"Queria fazer um agradecimento especial a Ana Rosa Kucinski, responsável direta pelo processo de separação química do Índio, trabalho que custou cerca de 1 ano de pesquisas e ao qual ela se entregou inteiramente até conseguir o resultado final.
Ana Rosa deveria ainda ajudar-nos no projeto inicial desse trabalho que era um estudo de reações fotoalfas em vários elementos, a maioria exigindo processos de separação química.
Numa manhã de trabalho habitual, Ana Rosa não apareceu. Procurada não a encontramos. Continuava não aparecendo, continuávamos a procurá-la e não a encontrávamos. Nada mais normal que comunicar então o fato às autoridades e aguardar a versão oficial. Daqui para frente é difícil continuar a história. Não houve versão oficial que nos deixasse tranqüilos, muito pelo contrário, ficamos mais intranqüilos ainda.
Ana Rosa continua desaparecida. Quem sabe um dia, pelo menos seu corpo apareça para a última homenagem dos seus pais, irmãos e amigos". (Da introdução à tese de mestrado de Engles Anastacio Finotti, sobre os estados isoméricos do Índio, apresentado ao Instituto de Física da USP, em 1979)



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